MAIS MÉDICOS X MAIS ENFERMEIROS
Estudo indica que, para além de todo o debate ideológico do programa Mais Médicos, uma parte considerável do problema poderia ser resolvida com desregulamentação que permitisse e estimulasse enfermeiros a fazer atividades de atendimento à saúde básica que hoje são preferencialmente realizadas por médicos.
O Mais Médicos valeu a pena? Esta é uma pergunta nada trivial, devido à imensa polêmica despertada pelo programa, sempre carregada de fortíssimas cores ideológicas, bem ao gosto da nossa época de polarização e radicalismos.
Uma recente pesquisa do economista José Feres, do Ipea e da FGV/EPGE, e de Bladimir Carrillo, da UFPE e da Universidade Federal de Viçosa (UFV), ainda por ter a sua publicação definitiva, chega a uma resposta bastante singela para aquela primeira pergunta – e que, de certa forma, esvazia o balão de retórica inflamada que marcou o debate sobre o Mais Médicos.
A pesquisa, com metodologia estatística, indica que o programa teve um efeito positivo em termos de aumentar o número de médicos e o número de atendimentos médicos por habitante em muitas dos municípios e localidades mais carentes do País.
No entanto, não houve melhoria em três importantes indicadores de saúde infantil no primeiro ano de vida.
E a razão também é simples: houve substituição de atendimentos em saúde pré-natal realizados por profissionais de enfermagem por atendimentos por médicos.
Essa substituição, por sua vez, não trouxe efeitos positivos sobre indicadores de saúde da primeira infância, um resultado em linha com a literatura que recomenda a substituição de médicos por enfermeiros na provisão de atendimento de saúde básica, segundo os autores.
Para os dois economistas, “já que ambos geram os mesmos benefícios em termos de saúde básica, a contratação de enfermeiros é mais custo-efetiva, e os médicos deveriam ser alocados para tarefas mais complexas”.
A recomendação, portanto, é a de desregulamentar a atividade médica, cujos regime legal e regulamentação no Brasil criam muitos impedimentos e obstáculos para que atividades que poderiam ser realizadas por profissionais de enfermagem sejam efetivamente assumidas por esta categoria profissional, e não exclusivamente por médicos.
O contexto no qual o Mais Médicos surgiu é o de uma distribuição de médicos bastante desigual no território brasileiro.
A média nacional é de 1,6 médicos/mil habitantes (comparado a 3,7 da OCDE), mas com mediana de apenas 0,46, e 15% dos municípios com menos de 0,2 médicos por mil habitantes – tipicamente cidades mais pobres, menos populosas e mais remotas.
Em setembro de 2013, foi lançado o Mais Médicos, com recrutamento de profissionais para trabalhar em municípios de baixa oferta, com salário de cerca de US$ 3 mil mais benefícios dos governos locais.
A adesão foi maciça, chegando a 4.132 municípios, ou 91,4% daqueles que poderiam se encaixar no programa.
Já prevendo que os médicos brasileiros, o grupo prioritário, não dariam conta do mercado (só 10% das vagas oferecidas foram preenchidas por brasileiros na primeira seleção), o governo acionou o acordo prévio de cooperação com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).
No acordo entre Brasil e Cuba, intermediado pela Opas, esta organização ficava com 5% do custo e o salário dos médicos cubanos era pago diretamente ao governo de Cuba, que teoricamente repassaria de 40% a 50% para os profissionais (na prática provavelmente foi menos).
Entre 2013 e 2016, dos 18 mil médicos recrutados pelo Mais Médicos, 11 mil foram no âmbito do acordo Brasil-Cuba.
A pesquisa de Féres e Carrillo baseou-se em informações muito detalhadas sobre o programa e os seus participantes, a que tiveram acesso por meio da Lei de Acesso à Informação.
Eles cruzaram esses dados com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) e o Sistema de Estatísticas Vitais (SEV).
A partir dessas bases de dados, investigaram três indicadores para avaliar os efeitos do aumento da oferta de médicos decorrente do Mais Médicos: baixo peso ano nascer (menos de 2,5 kg), nascimentos prematuros (menos que 38 semanas) e mortalidade até um ano de idade.
Os autores verificaram que o Mais Médicos levou a um aumento de 18% na proporção dos médicos nos municípios beneficiados, de 0,67 para 0,78 por mil habitantes; e a um aumento entre 5% e 8% no número de atendimentos.
O aumento dos atendimentos de saúde pré-natal por médicos foi de 10%, mas associado a uma redução dos atendimentos por enfermeiros.
E essa substituição não teve impacto nos três indicadores estudados.
Obviamente, o estudo investiga apenas alguns indicadores de saúde da primeira infância, mas é um sinal de que uma desregulamentação médica que ampliasse o papel de enfermeiros poderia resolver, de forma bem mais barata, parte considerável dos problemas que o Mais Médicos buscou abordar.
Esse estudo é um bom exemplo de avaliação de impacto de políticas públicas, uma moderna ferramenta essencial para melhorar a eficiência do Estado, mas ainda muito pouco utilizada pelos governos no Brasil – há uma estranha preferência no País por empoladas e estratosféricas discussões ideológicas, com pouca gente preocupada com a história real que os dados contam.
Outro interessante trabalho de Féres, com Danyelle Branco, da UFV, mostra como as secas reduzem o desempenho escolar, medido pela Prova Brasil em matemática e português, de crianças em escolas da zona rural do semiárido.
Há problemas como faltas escolares por causa de doenças provocadas pela má qualidade da água e aumento de trabalho infantil nas secas, mas os autores detectaram e mediram que uma das razões para a piora escolar é que simplesmente muitas escolas fecham as portas quando a água acaba.
E uma solução muito simples e barata, e que concretamente vai ajudar a melhorar o aprendizado dessas crianças no semiárido, é simplesmente a de prover cisternas para as escolas.
O Brasil precisa de menos ideologia e mais racionalidade.
Fonte: Estadão - 16.04.2019.